domingo, 28 de agosto de 2011

Borboletas no ventre

Publicado originalmente em 16 de maio de 2011. Reminiscências.

Foi ao casamento por ir. Não esperava. Não imaginava.
Trânsito de cidade grande faz atraso de noiva parecer delicadeza do relógio. Na porta, socializava, porque é o que resta à sociedade e aos amigos de bem, enquanto esperavam.
Então, viu o moço. Disseram que eles já se conheciam. Não lembrava. Sentia. Sentia-o em seu estômago por toda a vida. Borboletas farfalharam, impiedosamente, em seu ventre. Sorriram e se olharam. E mais uma vez, sorriram e se olharam. Pensaram que se cansariam. Não cansaram.
Do altar, ele, padrinho, observava-a. E ela, enxergava-o em sua totalidade, sem pudores. Borboletas.
Não ouviram uma frase sequer do sermão. Não se emocionaram com o enlace. Não foram tocados pelo brilho das alianças. Eles estavam em uma redoma particular magnética. Borboletas lhes enlaçavam.
Dançaram. Como se não houvesse nada além. Como se não houvesse ninguém. Nem o ritmo kitsch de Right Here Waiting os afetou. Talvez porque eles esperavam, ali, exatamente isto, sem sequer saber.
Acordou, com o cabelo ainda penteado do casamento, em ambiente desconhecido. Meias 7/8 ainda lhe vestiam. Somente elas. Olhou ao lado e viu-o. Despido. Ofegante. Dormente. Lindo. Lembrou-se da noite terminada em hotel pra saciar a sede. Lembrou-se dele tocando Strangers in the Night, ao piano do lobby. Comoveu-se.
Desesperada, com tamanho sentimento, quis fugir. Acordou-o. Geminiano não aceita fugas, exceto as próprias. Ele a enlaçou mais uma vez e as borboletas, suas eternas inquilinas, obrigaram a novo encontro. E outro. E mais outro.
O sol reclamava seus corpos de volta. Relutantes, saíram. Magoados que a luz os houvesse impelido a procurar a janela da redoma.
Fez-se dia. Fez-se realidade. Fez-se separação. Ele, indignado, repetiu o que a pele suada lhe obrigara a dizer. Somos amor. Somos mais que uma noite. Ela, assustada, gritou o que o coração negava. Somos noite.
O avião, pássaro malvado metálico, levou-o embora, na tarde que se seguia. Ela, covarde, temerosa, permaneceu enlutada no quarto escuro. Ela e as borboletas. Ele voou com a lembrança de todas elas ao seu redor.
O tempo passou. As borboletas enclausuraram-se em lagartas, contrariando a natureza da vida. Vez ou outra, o telefone toca. Ninguém fala. Ouve-se a dor esganiçada do desperdício e as teclas do piano, soando Strangers in the Night. Para sempre. Para nunca mais.



Chandon, açúcar e pimenta


Publicado, originalmente, em 12 de março de 2011. Escrito quando a fênix renascia.


Sentou-se confortavelmente na poltrona do terraço. A casa ainda estava confusa. Sua chegada era recente. Olhou os girassóis na colina toscana e abriu o Shiraz. Não abriria um Chianti para respeitar a localização. Não abriria Champagne para respeitar sua casta. De resto, Champagne a fortaleceria e neste momento, ela não seria a heroína.
Chandon era como lhe chamavam desde a mais tenra idade. Os amigos adoravam vê-la bebendo o líquido na pequena garrafa, pelo canudinho. Ela achava graça das piadas. Mal sabiam o que o líquido lhe proporcionava. Para dizer a exata verdade, por muito tempo, nem ela mesma o sabia.
Acomodou-se mais largadamente e sorveu um gole do vinho. Seco, rasgando a alma. Hoje, finalmente lhe permitiria as lágrimas. Resolveu recordar o compêndio da sua própria vida e sabia que sentiria alegria e dor. Chamou o casal de golden retriever, Perri (de D. Perrignon) e Cliq (de Veuve Cliquot) e deixou-se embalar pela mente entorpecida.
Ela tinha nascido nos trópicos. A mãe, ciente dos poderes da pequena, achou mais fácil a aceitação daquela vida por gente sabidamente calorosa. Descendia de uma pequena casta francesa do próprio Vale do Champagne. O pai, alheio aos poderes de mãe e filha, italiano carcamano, de início, não se importou com a mudança, mas não suportava a filha.
Cresceu cercada basicamente do amor maternal, cozinha farta e artes por todos os lados. De sensibilidade extremada, a criança era puramente bela, falante e desinibida. Preocupava a família, mas não sua mãe, ela adivinhar o bem e o mal por trás dos rostos e nunca sentir dor física. Podia se machucar severamente que as lágrimas não vinham, ainda que ela estivesse ciente da dor. No entanto, qualquer machucado alheio a fazia respirar em falso. Chandon nasceu para sentir a dor alheia e curá-la a seu modo.
De pequena artista que desviava a atenção das dores alheias para a música, a dança ou o circo de pantomimas infantis, Chandon virou chef du cuisine. Cozinhava por prazer para os amigos e sua mesa era acolhedora como seu sorriso e seus braços. Antes que alguém pudesse reclamar de sua dor, Chandon a adivinhava e falava as palavras, doces ou severas, que fossem necessárias. E como se as palavras não fossem o bastante, servia um prato fumegante ou um doce feito na hora. Fez disso o ganha-pão, não antevendo alternativas. Enquanto comia, o degustador acreditava que o curativo mágico vinha do conforto alimentício. Não vinha. Vinha das palavras e da aura, invisivelmente azul, com as quais Chandon envolvia a dor alheia. Intuitivamente, descobriu sua medicina paliativa: Champagne. Ao beber o cristal borbulhante, a dor alheia não lhe dilacerava o peito e não lhe embebedava.
Por esta veia quase vidente, nossa heroína era mal interpretada milhares de vezes, e, nascida em outra época, seria levada aos tribunais de Torquemada. Hoje, apenas sofria um certo ar desconfiado daqueles de alma maldosa. Como que para equilibrar sua generosidade, a moça não sentia dores físicas próprias, mas acabava por estar sempre a mercê da dor alheia que lhe queimava os vasos sanguíneos. Chandon se permitia – talvez sequer percebesse – aturar toda espécie de desvario de seu próximo, sempre justificada em sua alma, por uma compreensão quase inatingível para a gama de mortais comuns que vagueia pelas ruas. Uma série de envolvimentos amorosos tristonhos e traições de amizade lhe povoavam a memória. Poucas exceções ainda habitavam seu coração transparente e por uma delas estava em solo italiano. Iria procurá-lo até o encontro e caso não o achasse, sempre haveria sua cozinha, seus cachorros e seus amigos escolhidos. E Champagne. Sim, sempre.
Passou grande parte de sua vida, sorrindo e fazendo o que era seu heroísmo: amar toda espécie de gente e arrancar a dor deles. Em beijos. Em garfadas. Em broncas. Em sonhos. Em abraços. Até quando encontrou seu arqui-inimigo. Todo herói tem o seu. O erro dela foi acreditar que seria protegida por alguém, quando sua missão era proteger. Se apaixonou pelo inimigo. Ele a envolveu em brumas cintilantes e lhe afastou sorrateiramente de sua defesa: gente e Champagne. As panelas não fumegavam, seu amor gostava era de salada de tomates. Não havia mais doces, ele estava sempre em regime. Não havia mais amigos, ele era ciumento. Sobre as dores alheias, só se falava das dele. Só o casal de cachorros lhe suportava ver definhar, mais pela lealdade canina que por qualquer outro que o valha.
Ele era sua kriptonita e houve época em que, consciente da erosão de sua alma e corpo, pensou não poder se libertar. Encontrou, então, uma estudiosa de longos cabelos brancos, que lhe contou que ela era heroína em corpo humano. Instruiu-lhe a fuga. Ensinou-lhe o calcanhar de Aquiles do infeliz vampiro. Contou-lhe sua missão. Confiou o segredo protetivo do Champagne. Chandon fugiu. Vagou por lugares inóspitos. Decaiu fisicamente. Cansou-se. Por fim, maltrapilha, exausta, faminta de gente, sedenta, sua alma voltou lentamente. Encontrou quem de fato era raro como ela. Brindou. Champagne.
Voltou a sorrir, a cozinhar e a amar gente. Gente de toda sorte. Voltou a enviar pequenos raios azuis invisíveis que envolviam, agora, tão somente os escolhidos. Era heroína elitista. Atendia o grito surdo de uma estirpe sofrida e rara: a de gente leal. Confundia-se ainda no diagnóstico de quem era verdadeiro. Mas estava mais alerta e forte que nunca. A dor voltou a não lhe abalar e enxergava a angústia e a alegria humana a quilômetros. Retornou a ser o que era: Chandon.
Nossa heroína atende via telefone, fax, internet, sonho, sinal de fumaça, em casa, na rua, no metrô. Alguns dos agraciados nunca mais a vêem, outros moram ao lado da alma dela como se fossem irmãos. Alguns poucos flertam perigosamente com a sorte, indo e vindo de sua vida. A moçoila silencia ou ri copiosamente porque sabe que eles virão. E de todos os que foram tocados pela aura azul, Chandon sabe que terá que resgatar uns poucos. Um destes está lá perto dela, em algum lugar neste sol toscano. Chandon sabe disso. Assim como sabe que existe um Deus lá em cima que tudo vê e que decide quem comerá risotto e tomará Champagne com ela. Estejam dormindo em apartamentos desarrumados, ou com a alma povoada de conflitos inconfessáveis, os que são de Chandon a ela virão.
Por isso, agora, ela que já chorou, sorri para os girassóis. Precisa partir em sua nova missão. Chama os seus cães pra perto e vai buscar uma garrafa imponente de bolinhas de cristal. Brindará no auge da sua tranqüilidade e paz à natureza que lhe envolve. Beberá uma única taça. Por proteção. Por amor. Sorri e parte. Etérea e sorridente para a única missão que lhe cabe: dar felicidade e amor a quem de direito. Buona sera, bambini.

Noite de Falsas Estrelas

Publicado originalmente em 30 de dezembro de 2010. O último gesto de uma tragicomédia anunciada.


Olhei a noite sem estrelas. Todas as luzes da cidade me davam a falsa sensação de noite estrelada. Assim como teus afagos e tuas palavras me davam a falsa sensação de posteridade.

Senti o perfume do teu sussurro, vizinho aos meus cabelos, e, tua mão a deslizar suave pela minha cintura.

- Quais são teus planos?

“Ah, Deus! Eu não faço planos com você” – pensei. Mas respondi, um pouco esquiva, um pouco tua. Como sempre.

- Meus planos eram você, aqui, comigo, estreando o apartamento.

Não via teu rosto. Você me enlaçava por trás, mas senti teu sorriso. Você ia buscar a resposta desejada. Você ia me levar ao abismo para que eu pedisse socorro. Você ia brincar com cada centímetro de pele minha. Com cada fio de cabelo. Com cada esperança adormecida por minha força férrea.

- Quero saber mais. Você sabe que eu tenho milhares de planos. Você está neles. Eu já te contei todos eles.

Não bastava a você que eu fosse cúmplice dos teus erros, dos teus sonhos ou da tua vida encaracolada de meias-verdades. Era preciso que eu verbalizasse meu crime de te apoiar, de te acobertar, de te reger sem ser obedecida, de tocar um sustenido deslocado na tua orquestra, de ser tua.

Apoiei a cabeça no desvão do ombro. Meu pescoço estava pronto para ser submetido a um abate. Meu abate. Cedi todas as defesas e permiti que você tivesse a confissão de meu crime, como você o bem entendia. Comprei teu sonho e quase gritei à noite.

- Vou nos esconder nas araucárias. Vou levar o bebê, que nem fizemos, pra passear de pedalinho, no meio dos patinhos. Vou tatuar teu número na minha pele, não obstante você odeie tatuagem. Vou cozinhar todos os quitutes que você tanto gosta. Vou largar o cigarro. Não vou te abandonar ainda que nos separemos. Tudo será como já prometi.

Você me virou suave, olhou nos meus olhos, sorrindo. Beijou meus lábios, tão levemente, que podia se acreditar que era o farfalhar de uma borboleta. Depois me beijou a testa. Puxou-me pro teu peito e me abraçou. E eu pensei com meus botões, que já iam se abrindo, que meus planos eram só perpetuar este momento e estava tudo bem.

- Te adoro. Me conta agora os teus planos práticos.

Eu sorri, olhando pra cima. Você sabia que eu só tinha entrado no jogo. Também sabia que eu lutava ensandecidamente para não acreditar em você. Para não olhar para os teus olhos e achar que eles não mentiam, como realmente parecia.

- Eu quero tirar a cicatriz da perna, que aquele energúmeno me deixou no acidente.

- A cicatriz é uma besteira. Se bem que...

- O quê, baby?

- Eu vou te tirar a cicatriz. Vou tirar a cicatriz da tatuagem.

- Eu não tenho tatuagem.

- A tatuagem que o mal te fez na alma, amor.

Senti o nó apertar na minha garganta. Senti os olhos arderem. Senti um rio caudaloso pronto a correr. Então te beijei. Beijei longa e sofregamente. Sussurrei ao meu coração para esquecer dos planos, porque o melhor ainda estava por vir. Coração de moça com lua em câncer não se contém. Mal educado que só ele, me respondeu que não sabia aonde ia, mas que ia continuar a correr. Eu deixei.

Sonhos de amor numa noite de primavera

Publicado originalmente em 5 de novembro de 2010. Escrito em uma noite de insônias e despedidas internas.


Minha última noite, aqui. A brisa da primavera roça as flores, apenas chegadas na varanda. Meus olhos marejam, mas é preciso seguir em frente. De pé olhando a cidade adormecida, revejo meus passos. Choro.

Deito. O cansaço me embala rapidamente em sono profundo. É então que te vejo.

Eu, deitada, na cama em desordem, semi-nua, atordoada de sono, de olhos entreabertos. Tu, com a samba-canção a te ritmar, olhar compenetrado, sentado a minha frente, na poltrona, a buscar o soneto certo, indubitavelmente.

- Perdeste o sono?

- Achei os versos. É diferente.

Ergueste os olhos claros e profundos. Buscaste fazer teu sorriso mais bonito, numa fração de segundo que durou toda nossa vida. Olhaste-me com a mais profunda ternura e cheio de embevecimento.

- Encontras inspiração, nas horas menos possíveis, amado.

- Acordas, quando te prefiro dormindo, vida: teu sono repara o que te causei e eu resto vaidoso.

Ri. Poderia permanecer a te olhar por toda uma vida.

- Preciso deitar em teus braços para me reencontrar com Morfeu.

- Se te dou meu corpo, dormes outra vez?

Assenti, sorrindo.

Sentaste desajeitadamente, mas parecias cômodo. Enlaçaste-me com um braço e uma perna, deixando livre metade de ti para escrever. Cantarolaste baixinho, com tua timidez costumeira, mas deslocada em teu amor maroto.

- Vais dormir, agora, vida.

Te obedeci, como teu tom demandava. Abro os olhos, envolta em breu. Nãotivesse te obedecido, não fechava os olhos para os abrir aqui no vazio deste lugar.

Levanto-me. É a despedida perfeita da vida que não é mais a minha. Acendo o cigarro e me dou conta que nos nossos encontros, eternamente oníricos, sempre falamos em segunda pessoa. Seria assim se houvesse, algum dia, olhos nos olhos? Penso se teu sonho quase sempre tão real vai comigo na nova jornada, então sinto uma carícia leve na pele. Alguém desavisado diria que é o frio da madrugada. Mas eu, eu sei que é teu paletó buscando enlaçar meu vestido, respondendo-me que vais comigo.

Saudade tua, Chico. Sorrio.

Sobre o arco-íris e fogos de artifício


Publicado, originalmente, em 25 de abril de 2010. Era uma tarde clarividente e melancólica.



Sabiam-se de contato não casual, mas distraídos que são, não saberiam controlar os resultados do encontro. Eram todo um bem, e provavelmente todo um mal, de rara importância. Enfim, quem pode controlar o fluxo do eterno tilintar das trocas entre almas? Compreendiam que o elo de entendimento era quase visível e mesmo que um preferisse o arco-íris aos fogos de artifício do outro, subiram no dirigível.Não há porque evitar a comemoração barulhenta e espontânea quando se atinge o pé do arco-íris em toda sua beleza.

Passeio encantado em vale de fada termina ao fim do filme. Cavaleiros andantes se apaixonam mais pela cruzada que pela chegada. Eram sabedores intuitivos até mesmo disso. Reis de sonhos, almas encantadas, crianças crescidas, no entanto, não seriam tentados a parar por tão pouco. Flutuaram portanto entre as palavras, os sussurros e as telepatias. Entre risos e sorrisos, pousaram aqui e ali e dormiram pra sonhar, cada um em seu canto quase o mesmo sonho. Eram de sincronicidade impressionante e que ainda conhecida, sempre os surpreendia, porque a vida é isto: um pouco de sorriso, um pouco da surpresa.E se embeveciam de olhar um dentro do outro, serenamente. Um encanto adocicado, apimentado, amargurado.

Então, a bruma. Era hora de tirar a armadura e as botas vermelhas. A estrada continuaria ali. Não é preciso esvaziar os balões, ou fechar os portões. Apenas eliminariam o peso extra, por ora. Afinal, eram leves, eles. E depois, até mesmo o arco-íris permaneceria lá, eles sabiam. Estranha certeza de sempre acreditar na essência da não-casualidade. Prepotentes, talvez. O grande problema é que, neste momento, lhes faltava distração. Tão focados, cada um em si, não é possível amar o outro. É preciso certo desprendimento para morar em outra alma. E com eles, o cotidiano rotineiro não seria convincente. Então, apenas viveram, cada um por si, como puderam.

Ao pé do ouvido, senti a umidade da lágrima e a voz terna: "Sinto falta do encontro das nossas almas, mais do que qualquer outra coisa. Encantava-me dos pequenos detalhes, pequenas alegorias que me faziam sorrir e que brotam do nada sempre entre as memórias... Mas... Encontrar almas é uma sensação mais etérea e talvez me esqueça. Esqueço? Me lembro. Almas são eternas, e seu entrelaçar se dá, arrebatadora ou sutilmente. Ou ambos. Dos sentimentos mundanos, tudo se rouba. Dos afetos da alma, nada se pode subtrair. O porvir não se faz esperar."

Apaziguada com a essência da voz, fui-me, reencontrar com eles em sonho...