domingo, 28 de agosto de 2011

Chandon, açúcar e pimenta


Publicado, originalmente, em 12 de março de 2011. Escrito quando a fênix renascia.


Sentou-se confortavelmente na poltrona do terraço. A casa ainda estava confusa. Sua chegada era recente. Olhou os girassóis na colina toscana e abriu o Shiraz. Não abriria um Chianti para respeitar a localização. Não abriria Champagne para respeitar sua casta. De resto, Champagne a fortaleceria e neste momento, ela não seria a heroína.
Chandon era como lhe chamavam desde a mais tenra idade. Os amigos adoravam vê-la bebendo o líquido na pequena garrafa, pelo canudinho. Ela achava graça das piadas. Mal sabiam o que o líquido lhe proporcionava. Para dizer a exata verdade, por muito tempo, nem ela mesma o sabia.
Acomodou-se mais largadamente e sorveu um gole do vinho. Seco, rasgando a alma. Hoje, finalmente lhe permitiria as lágrimas. Resolveu recordar o compêndio da sua própria vida e sabia que sentiria alegria e dor. Chamou o casal de golden retriever, Perri (de D. Perrignon) e Cliq (de Veuve Cliquot) e deixou-se embalar pela mente entorpecida.
Ela tinha nascido nos trópicos. A mãe, ciente dos poderes da pequena, achou mais fácil a aceitação daquela vida por gente sabidamente calorosa. Descendia de uma pequena casta francesa do próprio Vale do Champagne. O pai, alheio aos poderes de mãe e filha, italiano carcamano, de início, não se importou com a mudança, mas não suportava a filha.
Cresceu cercada basicamente do amor maternal, cozinha farta e artes por todos os lados. De sensibilidade extremada, a criança era puramente bela, falante e desinibida. Preocupava a família, mas não sua mãe, ela adivinhar o bem e o mal por trás dos rostos e nunca sentir dor física. Podia se machucar severamente que as lágrimas não vinham, ainda que ela estivesse ciente da dor. No entanto, qualquer machucado alheio a fazia respirar em falso. Chandon nasceu para sentir a dor alheia e curá-la a seu modo.
De pequena artista que desviava a atenção das dores alheias para a música, a dança ou o circo de pantomimas infantis, Chandon virou chef du cuisine. Cozinhava por prazer para os amigos e sua mesa era acolhedora como seu sorriso e seus braços. Antes que alguém pudesse reclamar de sua dor, Chandon a adivinhava e falava as palavras, doces ou severas, que fossem necessárias. E como se as palavras não fossem o bastante, servia um prato fumegante ou um doce feito na hora. Fez disso o ganha-pão, não antevendo alternativas. Enquanto comia, o degustador acreditava que o curativo mágico vinha do conforto alimentício. Não vinha. Vinha das palavras e da aura, invisivelmente azul, com as quais Chandon envolvia a dor alheia. Intuitivamente, descobriu sua medicina paliativa: Champagne. Ao beber o cristal borbulhante, a dor alheia não lhe dilacerava o peito e não lhe embebedava.
Por esta veia quase vidente, nossa heroína era mal interpretada milhares de vezes, e, nascida em outra época, seria levada aos tribunais de Torquemada. Hoje, apenas sofria um certo ar desconfiado daqueles de alma maldosa. Como que para equilibrar sua generosidade, a moça não sentia dores físicas próprias, mas acabava por estar sempre a mercê da dor alheia que lhe queimava os vasos sanguíneos. Chandon se permitia – talvez sequer percebesse – aturar toda espécie de desvario de seu próximo, sempre justificada em sua alma, por uma compreensão quase inatingível para a gama de mortais comuns que vagueia pelas ruas. Uma série de envolvimentos amorosos tristonhos e traições de amizade lhe povoavam a memória. Poucas exceções ainda habitavam seu coração transparente e por uma delas estava em solo italiano. Iria procurá-lo até o encontro e caso não o achasse, sempre haveria sua cozinha, seus cachorros e seus amigos escolhidos. E Champagne. Sim, sempre.
Passou grande parte de sua vida, sorrindo e fazendo o que era seu heroísmo: amar toda espécie de gente e arrancar a dor deles. Em beijos. Em garfadas. Em broncas. Em sonhos. Em abraços. Até quando encontrou seu arqui-inimigo. Todo herói tem o seu. O erro dela foi acreditar que seria protegida por alguém, quando sua missão era proteger. Se apaixonou pelo inimigo. Ele a envolveu em brumas cintilantes e lhe afastou sorrateiramente de sua defesa: gente e Champagne. As panelas não fumegavam, seu amor gostava era de salada de tomates. Não havia mais doces, ele estava sempre em regime. Não havia mais amigos, ele era ciumento. Sobre as dores alheias, só se falava das dele. Só o casal de cachorros lhe suportava ver definhar, mais pela lealdade canina que por qualquer outro que o valha.
Ele era sua kriptonita e houve época em que, consciente da erosão de sua alma e corpo, pensou não poder se libertar. Encontrou, então, uma estudiosa de longos cabelos brancos, que lhe contou que ela era heroína em corpo humano. Instruiu-lhe a fuga. Ensinou-lhe o calcanhar de Aquiles do infeliz vampiro. Contou-lhe sua missão. Confiou o segredo protetivo do Champagne. Chandon fugiu. Vagou por lugares inóspitos. Decaiu fisicamente. Cansou-se. Por fim, maltrapilha, exausta, faminta de gente, sedenta, sua alma voltou lentamente. Encontrou quem de fato era raro como ela. Brindou. Champagne.
Voltou a sorrir, a cozinhar e a amar gente. Gente de toda sorte. Voltou a enviar pequenos raios azuis invisíveis que envolviam, agora, tão somente os escolhidos. Era heroína elitista. Atendia o grito surdo de uma estirpe sofrida e rara: a de gente leal. Confundia-se ainda no diagnóstico de quem era verdadeiro. Mas estava mais alerta e forte que nunca. A dor voltou a não lhe abalar e enxergava a angústia e a alegria humana a quilômetros. Retornou a ser o que era: Chandon.
Nossa heroína atende via telefone, fax, internet, sonho, sinal de fumaça, em casa, na rua, no metrô. Alguns dos agraciados nunca mais a vêem, outros moram ao lado da alma dela como se fossem irmãos. Alguns poucos flertam perigosamente com a sorte, indo e vindo de sua vida. A moçoila silencia ou ri copiosamente porque sabe que eles virão. E de todos os que foram tocados pela aura azul, Chandon sabe que terá que resgatar uns poucos. Um destes está lá perto dela, em algum lugar neste sol toscano. Chandon sabe disso. Assim como sabe que existe um Deus lá em cima que tudo vê e que decide quem comerá risotto e tomará Champagne com ela. Estejam dormindo em apartamentos desarrumados, ou com a alma povoada de conflitos inconfessáveis, os que são de Chandon a ela virão.
Por isso, agora, ela que já chorou, sorri para os girassóis. Precisa partir em sua nova missão. Chama os seus cães pra perto e vai buscar uma garrafa imponente de bolinhas de cristal. Brindará no auge da sua tranqüilidade e paz à natureza que lhe envolve. Beberá uma única taça. Por proteção. Por amor. Sorri e parte. Etérea e sorridente para a única missão que lhe cabe: dar felicidade e amor a quem de direito. Buona sera, bambini.

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